Fluir com a vida é dançar com ela, confiar e deixar os dias nos conduzirem. Um dia, uma manhã, ou uma hora que seja já é absolutamente suficiente pra nos fazer lembrar que não precisamos lembrar de tudo, e que é possível só se entregar para o ritmo das coisas.
Por mais romantizado que pareça, não acredito que fluir queira dizer se esquecer das partes práticas do dia-a-dia: cuidar da casa, lavar a louça, trabalhar, responder uma mensagem. Não é uma questão de ignorar tarefas (ainda que, se o dia pedir, pode ser que elas sejam ignoradas — ou melhor, ressignificadas). Fluir com a vida não requer ignorar partes dela, pois a vida engloba tudo.
Vejo fluir como fazer, porém sem mentalizar demais. Lavar a louça que precisa ser lavada, mas não acordar pensando nela. Ainda assim, em algum momento do dia, como por mágica, lá estou eu, em frente a louça, lavando-a com alegria, sem ter planejado lavá-la.
Sempre haverão coisas a serem feitas, tarefas a serem cumpridas, mas elas podem ser feitas à partir de uma força diferente daquela dos mandos e desmandos da mente. Uma energia que não é cognitiva; tem menos, ou nenhuma, palavra. Surge de outro lugar. As tarefas vão sendo feitas, se encaixando e se organizando. Sem nada ouvir, escutamos um sussurro não de palavras, mas de uma correnteza constante de sensações que vai nos levando no ritmo do rio do tempo.
"A natureza não se apressa,
ainda assim tudo é realizado."
"Nature does not hurry,
yet everything is accomplished" — Lao Tzu
Porque temos tanta dificuldade de confiar em nós mesmas e nas forças que nos embalam, em confiar que não precisamos mentalmente nos dizer mil vezes o que precisa ser feito pra que algo seja, efetivamente, feito? Olho para uma árvore, para seu tronco poderoso até seus menores galhos que carregam as folhas. Ela não precisa se dizer aquilo que deveria fazer... usa o ambiente a seu favor — na circunstância que esteja — e torna-se o que é. Ela não reflete sobre o melhor momento para ir crescendo, não se culpa se setembro foi chuvoso e a falta de sol a fez crescer em um ritmo mais lento. Seu crescimento é sem barreiras; árvores apenas fluem, pois não têm medo nem dúvidas, e também não ficam mal humoradas com suas circunstâncias.
Percebo que a fluidez só acontece na confiança total. E não falo sobre o confiar que montamos na cabeça, e que é, na verdade, uma narrativa que nos contamos de como será o momento em que finalmente vamos confiar. Falo do confiar em si, agora, como um salto. Há uma diferença enorme entre os dois, ainda que a similaridade facilmente nos engane.
Talvez os dias, horas, ou segundos, em que realmente confiamos e nos deixamos fluir, sejam 1 em 1 milhão... e que, na maior parte do tempo nos sintamos engolidas por todos os outros momentos em que as circunstâncias parecem nos obrigar a andar em outro compasso. Não importa... confiar na fluidez por um segundo é suficiente para nos ensinar que é possível viver no infinito.
Por experiência própria, sinto que é também tentador rotular o sentimento de não-fluidez como ruim; mas não ganhamos nada ao considerá-lo como pior. Pois, aí mesmo, estamos congelando fluidez em padrão, e ao invés de fluirmos, ficamos, de novo, presas na busca por um ideal. Isso nos leva a viver uma vida inteira de insatisfação, ansiando por algo que na verdade nunca se descola de nós. Acho importante reconhecermos isso.
Em dias que o volume da mente fica muito alto, me ajuda sempre lembrar que, ainda que a fluidez seja como água do rio, a água corre em uma certa direção graças à rocha, ao chão, firme e incessantemente presente. Pra fluir é preciso confiar no chão — que, pra mim, é a confiança na bondade fundamental da vida. Na minha busca ou na minha loucura, posso até me esquecer de que a possibilidade de fluir está sempre lá — não há um segundo das nossas vidas em que não esteja. Basta me lembrar deste chão que não falha, nunca me deixa cair, pra que eu possa, num mero instante de quietude, voltar a ouvir o tintilar do rio da vida me sustentando, fluindo incessante bem debaixo dos meus pés.
Ps.: a foto que ilustra este post é propositadamente de uma cena de trabalho — e não uma cena de um campo florido, um rio... justamente para me (e nos) lembrar que fluir é sempre possível na vida aqui e agora, do jeito que ela estiver.