Este é um tutorial simples, destinado a quem quer fazer seus primeiros experimentos com tingimento natural, vindo de alguém que não é especialista no assunto. Tentei explicar a técnica de um jeito acessível para qualquer pessoa que esteja com vontade de experimentá-la, sem entrar em detalhes muito precisos como proporções, tipos de mordentes... Isso porque eu mesma não faço tingimento natural como uma ciência exata, e mais como um processo fluido. Na verdade nunca tive muita vontade de entrar nos pormenores da técnica — mantenho desde sempre ela assim, simples — por isso nem que quisesse poderia explicar mais a fundo. Ainda assim obtenho ótimos resultados, mas é bom contar que a simplicidade implica que o resultado final seja sempre diferente, e sempre uma surpresa. Gosto muito dessa imprecisão e falta de controle — pra mim justamente ai está a beleza deste processo.
Porém, se você precisa, ou quer, resultados mais constantes ou duradouros, recomendo então buscar informações mais específicas. Há artistas incríveis, sites e livros especializados no assunto, e dedicados a explicar em profundidade a técnica de tingimento natural; deixei uma lista daquelas que conheço e recomendo no final desta página.
Alguns conceitos importantes
O que chamamos de resumidamente de tingimento natural na verdade envolve dois processos distintos: o primeiro é o processo de extrair pigmentos de um material natural; e o segundo é usar o pigmento extraído para tingir um tecido ou outro material.
De maneira básica, para a extração do pigmento, é necessário:
1. algum tipo material natural que possua potencial tintório, ou seja, cujo pigmento extraído tenha potencial para tingimento;
2. uma substância ou meio para efetuar a extração — comumente a água, mas há outras, como o álcool.
Os materiais naturais — plantas, cascas, frutos, flores, sementes, raízes... — que possuem potencial tintório são inúmeros e variados. Alguns exemplos:
- cascas de cebola (roxa e branca)
- cascas e sementes de avocado
- cascas de pinhão
- cúrcuma
- repolho roxo
- feijão preto
- chá mate, chá preto
- café
- flores de macela
- lavanda
- alecrim
- cascas de romã
- folhas de eucalipto
...a lista é enorme.
A beleza da extração de pigmentos naturais é que podemos usar justamente aqueles materiais aos quais temos mais acesso na região em que moramos, e que façam naturalmente parte do nosso dia-a-dia — fazendo assim com que o processo fique ainda mais conectado com a sazonalidade e disponibilidade natural da terra, além de fazer com que aproveitemos coisas que seriam descartadas.
Já para o segundo processo, o tingimento em si, são necessários 3 elementos:
1. a tintura, ou seja, o pigmento na água;
2. o material a ser tingido: tecidos e fios feitos de fibras naturais, sejam elas de origem vegetal (algodão, linho) ou animal (lã natural, seda);
3. um mordente, substância que ajudará o pigmento a se fixar no material a ser tingido.
A escolha de quais materiais serão usados em cada destes 3 itens depende do que queremos como resultado final. Não há regras fixas, mas é necessário saber as informações básicas para assim ter ciência de qual será a intensidade e a durabilidade da cor obtida. Por isso, é importante saber que:
// o material a ser tingido tem influência na cor final. Quando tingimos tecidos e fios feitos de fibras animais — lã natural e seda — obtemos cores mais vibrantes e que duram por mais tempo, mesmo sem uso de mordentes (fixadores). Isso se explica por conta das fibras animais serem feitas de proteínas, que naturalmente fixam o pigmento. Já tecidos e fios feitos de fibras vegetais — algodão, linho e outros — não possuem proteínas (são compostas por celulose) por isso geralmente considera-se que o uso de um mordente é necessário quando tingimos materiais deste tipo (porém nem sempre — mais a seguir).
// cada material usado para extração do pigmento tem características diferentes no que diz respeito à duração da cor ao ser exposta à luz. Por exemplo, nos testes que já fiz por aqui no tingimento de um tecido de algodão sem uso de mordentes, a cor obtida das cascas de pinhão foi bastante resistente à exposição à luz e sol, e continua praticamente igual ao primeiro dia. Já a cor obtida do avocado muda com o passar do tempo, saindo de um tom inicial bem rosado para se tornar um pouco mais alaranjado; e o azul claro obtido do repolho roxo quase sumiu depois de alguns meses, tornando-se um verde claro quase imperceptível.
// ou seja, mordentes são realmente importantes para certos tipos de pigmentos, e também se queremos que a cor obtida seja mais vibrante e viva (pois ele intensifica, e ás vezes até mesmo altera a cor), ou se precisamos que ela seja mais resistente à luz e a lavagens. Porém...
// ...alguns materiais naturais facilitam o processo de tingimento por serem naturalmente ricos em taninos. No tingimento natural, taninos agem como fixadores naturais do pigmento nas fibras de celulose, e por isso materiais ricos dessa substância dispensam em partes o uso de mordentes — e digo em partes pois um mordente como o alumen de potássio, ou um tratamento prévio do tecido com leite de soja será mais eficaz na fixação da cor. Mas é só pensar como vinho — bebida rica em taninos — é super difícil de tirar da roupa, ou seja, o poder de fixação dos taninos por si só já é ótimo e suficiente. Alguns materiais ricos em taninos são: cascas e sementes de avocado, chá preto e cascas de romã.
// por último, saiba que muitas coisas influenciam na cor obtida — até o pH da água que usamos no processo vai interferir no resultado final. Por isso os resultados sempre serão bastante variados.
Com estas informações em mente, é possível então determinar o que usar de acordo com o resultado que se quer. Por exemplo: aqui no atelier eu não uso mordentes. Não tenho nada contra eles — mas apenas não me importo de obter cores mais suaves, e nem que se transformem com o passar do tempo. Coisa que, aliás, vai acontecer de qualquer maneira — o mordente apenas retarda esse processo. Aliás, isso é importante de saber também: cores obtidas do tingimento natural são cores que possuem vida, ou seja, invariavelmente mudarão com o tempo, mesmo que muito lentamente. Esta é outra das muitas belezas desse processo.
Antes de começar
Tingir naturalmente tem a vantagem de ser um processo bastante simples e praticamente sem riscos. Ainda assim, alguns cuidados são muito importantes:
// por precaução, panelas, potes, colheres e qualquer outro utensílio que seja usado para um processo de tingimento natural não deverá mais ser usado para outra finalidade, especialmente para preparo de alimentos. Reserve utensílios que andam velhinhos por aí apenas para esta finalidade (panelas de alumínio em especial, pois as partículas de alumínio que elas soltam no processo também ajudam a fixar as cores).
// evite aspirar diretamente a fumaça proveniente da ebulição das tinturas durante o processo, para evitar o risco de reações nas mucosas. Também evite contato direto com a pele, ou seja, se for manipular a tintura com as mãos use luvas de borracha!
// e de modo geral, cuidado com a água fervente, panelas e utensílios que estarão estupidamente quentes. Faça tudo com cuidado e atenção, para evitar queimaduras.
Processo
Irei descrever aqui o processo de tingimento de um tecido 100% algodão com cascas e sementes de avocado. O avocado (tem de ser avocado, aquele de casca preta, pois com o nosso abacate não funciona...) é um daqueles materiais riquíssimos em taninos, e por isso o tingimento com ele torna-se extremamente simples, sem a necessidade de se manipular mordentes, para um resultado de cor extremamente satisfatório — um rosado com carinha de antigo que com o tempo vai se tornando uma cor linda de salmão/pêssego.
O mesmo processo poderia também ser usado para tingimento com cascas de pinhão, ou mesmo qualquer outro material — mantendo-se apenas em mente que a omissão de um mordente fará com que qualquer cor obtida se altere com o tempo.
Parte 1: extração do pigmento
Material necessário
- uma panela média-grande
- uma colher de pau
- cascas e sementes de 6 avocados maduros (casca preta)
- água
- pedacinhos pequenos do tecido que pretende tingir (para testar a cor)
- um recipiente extra (pote de vidro, bacia ou balde)
- uma peneira média
- um pano limpo (que será manchado)
Modo de fazer
// A primeira coisa que devemos fazer é juntar as cascas e sementes dos avocados que consumimos. Para isso, depois de ter retirado toda a polpa, lave muito bem as cascas e a semente em água corrente, tirando o máximo possível os restinhos de polpa verde. Deixe-os secar em uma janela ensolarada por alguns dias, e em seguida congele no freezer. Vá juntando conforme for consumindo. Você pode também usá-las frescas caso consiga a quantidade necessária de uma só vez. (A saber: quanto mais cascas e sementes usar para a extração do pigmento, mais quantidade de tecido poderá ser tingido obtendo-se uma cor presente. Poucas cascas para muito tecido resultará em uma cor clara; muitas cascas e sementes para pouco tecido resultará em uma cor mais pronunciada, mas ainda um tom 'nude', nunca vibrante ou intenso — mudar a intensidade da cor é apenas possível através do uso de um mordente).
// uma vez obtida a quantidade de cascas e sementes, é hora de fazer a extração, que é como fazer um caldo ou um chá. Coloque as cascas e sementes na panela, e adicione água até cobri-las por completo. Leve ao fogo baixo, até levantar fervura. A partir de então, mantenha a água levemente fervilhando por 40 minutos a uma hora, e desligue. Neste período, evite que a água levante fervura muito intensa, é melhor que seja um processo mais lento.
// depois deste tempo, a água já deverá ter mudado para uma cor vermelho-rosado. As cascas devem estar bem moles e as sementes podem ter se partido ao meio. Com a colher, ajude este processo quebrando as cascas, e partindo as sementes em dois. Deixe a panela descansar. Se estiver fazendo este processo durante o dia, pode ir aferventando por mais 20-30 novamente conforme a água for esfriando, de modo a extrair o máximo de pigmento dos materiais. Pode também deixar a panela descansando de um dia para o outro, e levantar nova fervura ao amanhecer. Este é um processo que pode ser bem intuitivo. Você pode manter esse processo por até 48h, porém não mas do que isso para evitar que estrague. Para testar a intensidade da tintura, coloque na panela um pedacinho do tecido que pretende tingir e deixe-o na tintura por algumas horas. Retire da panela, aperte para retirar o excesso de liquido e deixe secar para que ele revele a cor final.
// quando decidir que não há mais pigmentos a serem extraídos, deixe a água esfriar por completo, e então retire os pedaços grandes de cascas e sementes e descarte-os. Em seguida será preciso também retirar os pedacinhos menores que ficaram na água, para que eles posteriormente não manchem o tecido na próxima etapa. Para isso, coe a água passando-a da panela para outro recipiente usando uma peneira coberta de um pano limpo, a fim de retirar mesmo as menores partículas sólidas.
// sua tintura está pronta. Se quiser, você pode aferventá-la mais para reduzir o volume líquido, e então guardá-la em potes na geladeira, por até uma semana; pode também conservá-la no congelador para uso nos próximos meses; ou então, voltar o líquido para a mesma panela e começar diretamente o processo de tingimento.
Parte 2: tingimento
Material necessário
- aprox. 50cm de tecido (branco ou cru) composto exclusivamente de fibras naturais (largura 1,40m)
- a tintura obtida de cascas e sementes de pelo menos 6 avocados
- uma panela onde o tecido possa fluir na água com bastante espaço (pode ser a mesma usada na extração do pigmento, contanto que o tecido caiba com folga)
- uma colher de pau
- água
Modo de fazer
// para obter bons resultados no tingimento, é super importante retirar do tecido os químicos e gomas usados durante a fabricação, e assim evitar manchas. A melhor maneira de fazer isso é escaldar o tecido: deixe-o ferver em um panela com água + um pouco de sabão neutro e uma colher de bicarbonato de sódio por aproximadamente 30 minutos, descartando a água (que deve sair amarelada) ao final do processo. Lavá-lo à máquina, com água quente ou não, ajuda, mas não tem a mesma eficácia.
// umedeça o tecido (que já tenha sido previamente escaldado) e coloque-o na panela. Em seguida despeje por cima a tintura, e se necessário, complete com água até cobrir o tecido por completo, e deixando-o com espaço para fluir na água com folga. Não se preocupe: adicionar mais água não mudará a potência da tintura.
// leve a panela ao fogo, até levantar fervura. Quando ferver, desligue. Deixe o tecido de molho por algumas horas, remexendo com a colher de vez em quando, para evitar manchas. Quando a água esfriar, ligue o fogo novamente até levantar fervura e desligue. Repita este processo quantas vezes mais quiser, mantendo a água aquecida, e deixando o tecido de molho por até 24h.
// para retirar o tecido do panela, deixe que a água esfrie por completo. Retire o tecido com a colher, e, usando luvas de borracha, torça-o até retirar todo o excesso de água (faça isso sobre a panela, para salvar tintura!). Não enxágue o tecido! Pendure-o à sombra (nunca sob o sol) e deixe secar completamente. Depois de seco, guarde em um armário fechado até o momento de usá-lo. Se quiser, após uma semana enxágue ou lave com sabão neutro.
// é possível que a tintura que ficou na panela ainda tenha potencial para tingir pequenas coisas, como cordões de algodão, retalhos menores... use-a ao máximo! Você pode também deixá-la aferventar para evaporar a água, deixando a tintura bem concentrada, e poderá assim usá-la como aquarela líquida.
Cuidados com o tecido tingido
Retarde ao máximo a primeira lavagem, e mesmo depois, lave o mínimo necessário. Quando lavar, use sempre apenas água fria e o sabão mais natural, neutro e delicado possível.
Evite a exposição prolongada ao sol. Armazene tecidos tingidos naturalmente em caixas ou armários fechados se quiser evitar mudanças de cor. Tecidos dobrados que ficam expostos à luz natural podem formar faixas de manchas nas dobras...
Da maneira que for, aproveite o processo, e mesmo que a cor mude ou clareie com o tempo, lembre-se de apreciar essa mudança como uma prova da impermanência da natureza :)
Para mais informações
Uma lista de pessoas, livros e sites que me ensinaram sobre o tingimento natural. Todos eles contém informações mais detalhada para quem deseja se aprofundar no assunto.
Rebecca Desnos // tem muitas informações em seu blog, além de livros digitais. Seu approach é bem natural, vegano. Ensina uma técnica que usa leite de soja como mordente.
Mattricaria // marca de Maibe Maroccolo, vende pigmentos prontos e outros materiais. Dá cursos online e tem muito conteúdo gratuito no seu instagram.
The Wild Dyer (livro) // escrito pela artista Abigail Booth, cobre todas as etapas de tingimento natural e contém inclusive projetos para os tecidos. Além de ser um livro visualmente lindo.
Farm & Folk // Sara B faz quilts maravilhosos com tecidos tingidos naturalmente. Em seu blog há uma série de posts bem completos explicando seu processo de tingimento natural.
Melissa Jenkins // artista que também compartilha muitos tutoriais em seu blog, especialmente sobre extração de pigmentos para fazer tintas para pintura.